Nem liberalismo nem desenvolvimentismo: uma visão informacionista do avanço (ou progresso) socioeconômico (Parte Final)

Jose Carlos Cavalcanti
7 min readDec 16, 2024

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Ao longo das últimas 5 partes desta série, anteriormente publicadas em 11/11/2024, 18/11/2024, 25/11/2024, 02/12/2024 e 09/12/2024, argumentamos que estamos ficando saturados de teorias, e teorias e modelos econômicos em particular, que já não estão ajudando muito na compreensão dos contextos que estamos vivenciando neste século XXI, e que isso pode ter muito a ver com o hiato entre tais teorias e modelos e a dinâmica das transformações nos contextos das realidades socioeconômicas de um mundo cada vez mais complexo, globalizado e integrado por redes, e agora mediado por relações tanto humanas quanto não-humanas (i.e., por algoritmos, assistentes e agentes inteligentes, processos automatizados, robôs etc.).

E para a defesa deste argumento, decidimos tomar como unidade de análise duas correntes do pensamento econômico brasileiro: ou seja, decidimos focar no debate entre aqueles que se identificam com o liberalismo neoclássico econômico e aqueles que se autointitulam como pertencentes ao campo do desenvolvimentismo econômico. Para tanto, a parte 2 desta desta série tratou dos principais pilares do pensamento econômico relacionados com o “mainstream econômico”, a parte 3 desta série lidou com o “desenvolvimentismo econômico”, a parte 4 e a parte 5 da série introduziram nossa visão informacionista do avanço (progresso) socioeconômico, e esta newsletter dá um fechamento (mesmo que parcial) desta visão.

Assumindo, como vimos nas newsletters de 02–12–2024 e de 09–12–2024, que os principais ativos produzidos na economia e sociedade digitais são ativos intangíveis tais como dados, informação, conhecimento e discernimento, como se manifestam a estrutura e a dinâmica desta nova economia?

Inicialmente, e tal como nas escolas clássica e neoclássica, tanto os indivíduos quanto as empresas maximizam suas respectivas funções utilidades. No entanto, tais agentes agora criam (ou se confrontam com) novas formas de organização da produção econômica caracterizadas essencialmente por plataformas digitais, ecossistemas de negócios, e arquiteturas de negócios extremamente sofisticadas, discriminadas a seguir (com ajuda do Leo, assistente inteligente do browser Brave).

As plataformas são negócios online que facilitam interações comerciais entre pelo menos dois diferentes grupos, tipicamente incluindo ofertantes e consumidores. Elas possibilitam a troca de informação, bens, ou serviços, e frequentemente criam uma comunidade em torno destas interações. As plataformas digitais podem assumir várias formas, dependendo dos seus modelos de negócios e propósitos:

  • Plataformas orientadas a serviços (e.g., Uber, Airbnb, GrubHub) que conectam compradores e vendedores;
  • Marketplaces (e.g., Amazon, eBay) que permitem consumidores comprarem bens e serviços de múltiplos ofertantes;
  • Redes Sociais (e.g., Facebook/Meta, LinkedIn/Microsoft) que facilitam conexões pessoais e profissionais;
  • Online marketplaces para serviços (e.g., Upwork, Freelancer) que conectam clientes com contratantes freelancers ou independentes.

As características chave das plataformas digitais incluem:

  • Network effects (efeitos de rede): O valor da plataforma cresce à medida que mais usuários ou ofertantes se juntam a ela, criando um ciclo que se auto-reforça;
  • Standardized interfaces (interfaces padronizadas): As plataformas digitais tipicamente provêm APIs (Application Programming Interfaces) padronizadas ou interfaces para ofertantes e consumidores interagirem com a plataformas;
  • Decentralized control (controle descentralizado): As plataformas digitais frequentemente operam independentemente, com controle direto mínimo de um só entidade, permitindo maior flexibilidade e inovação;
  • Data-driven (guiados por dados): As plataformas digitais dependem fortemente de dados para otimizar suas interações, parear usuários, e melhorar seus serviços;
  • Scalability (escalabilidade): As plataformas digitais são projetadas para manipular grandes volumes de tráfego e transações, tornando-as altamente escaláveis.

Os ecossistemas de negócios, por sua vez, podem ser definidos como uma rede dinâmica de organizações, incluindo ofertantes, distribuidores, consumidores, competidores, agências do governo, e outros stakeholders, envolvidos na entrega de um produto ou serviço específico através tanto de competição quanto de cooperação. Um ecossistema é caracterizado por:

  • Interconnectedness (interconectividade): Cada entidade afeta e é afetada pelos outros, criando um relacionamento evolvente e constante;
  • Competition and cooperation (competição e cooperação): As entidades colaboram para criar valor, enquanto também competem para inovar e melhorar suas ofertas;
  • Adaptation and evolution (adaptação e evolução): O ecossistema é dinâmico, com entidades adaptando e evolvendo para sobreviver e lutando em resposta a disrupções externas e mudanças;
  • Shared goals (bens compartilhados): O ecossistema é guiado por um propósito comum, com membros trabalhando juntos para criar valor para um conjunto compartilhado de consumidores;
  • Orchestrators (orquestradores): Pelo menos um membro age como o orquestrador, facilitando as interações e relacionamentos entre os participantes do ecossistema.

Já as arquiteturas de negócios são projetos que delineiam os objetivos estratégicos de uma organização, alinhando-os com as realidades operacionais. Elas servem como uma ponte, traduzindo estratégias de negócios em ações executáveis, e assegurando um enfoque coesivo para atingir as metas organizacionais. A arquitetura de negócio provê um arcabouço compreensivo que captura a essência de uma organização, incorporando sua estrutura, processos, informação e aplicações.

Seus elementos chave são:

  • Capability Modeling (Modelagem de Capacidade): Definir as habilidades necessárias para atingir metas estratégicas, representando o que o negócio pode fazer;
  • Capabilities (Capacidades): Capacidades de negócios definem habilidades de uma organização, descrevendo o que o negócio pode fazer;
  • Event Value Chains (Eventos da Cadeia de Valor): Define o fluxo e a sequência dos processos/atividades disparados por um evento de negócio, e resultante na adição de valor;
  • Organisation Architecture (Arquitetura Organizacional): Descreve a estrutura da empresa, incluindo governança, processos de negócios, e informação de negócio;
  • Change Management (Gestão de Mudança): Dá suporte a iniciativas de mudança organizacional ao prover um enfoque estrutural para avaliar capacidades presentes, definindo estados futuros, e planejando a transição.

E como se define a criação, ou o confronto, com estas novas formas de organização da produção econômica? Nas áreas de Ciência da Computação e de Sistemas de Informação (por simplificação chamaremos de “informática”), uma noção muito comum aos seus profissionais é a da hierarquia dados-informação-conhecimento-sabedoria, visualizada na Figura 1 à frente.

Para dar conta de como a “visão informacionista” trata esta discussão, valemos do que chamamos de “evolução histórica da economia da informação”. Em contraste com a lógica de trabalho da área de informática (que se concentra na busca, tratamento, armazenamento, e processamento de dados agregando contexto, transformando-os em informação, e dando significado na forma de conhecimento, para poder extrair discernimentos), a Ciência Econômica (que é secular, e, portanto, já dotada de um amplo acervo de conhecimentos) só veio a focar na informação como unidade de análise a partir dos anos 1960s, e a só se preocupar mais detidamente com dados a partir do século 21. Com a explosão da Inteligência Artificial — IA na terceira década deste século, é que os profissionais de Economia passaram a dar atenção especial dos discernimentos que podem ser conquistados a partir da IA.

Sendo assim, podemos afirmar que a dinâmica na visão informacionista aqui colocada contrasta com a da hierarquia da informática da forma como está apresentado na Figura 2 à frente. Qualificando um pouco mais a hierarquia da evolução da economia da informação, resgatamos aqui o trabalho pioneiro e inovador sobre “Conhecimento na Economia” do economista austríaco Friedrich Hayek (Prêmio Nobel de Economia de 1974) como representante fundamental da base da pirâmide direita da Figura 2. E dois dos seus trabalhos seminais nesta temática são o artigo “Economics and Knowledge”, de 1937, e “The Use of Knowledge in Society”, de 1945.

Já a Economia da Informação como área de tratamento da Ciência Econômica veio a ganhar domínio específico a partir das contribuições dos Professores George Stigler nos anos 1960s (Prêmio Nobel de Economia de 1982), George Akerlof, Michael Spence e Joseph Stiglitz nos anos 1970s (Prêmios Nobel de 2001) foram fundamentais nesta nova compreensão do papel da informação na economia a partir de uma noção elementar: um lado do mercado tem melhor informação do que o outro lado!

E como se processa o avanço socioeconômico a partir desta visão informacionista? Tal como definido na nova Teoria do Crescimento Econômico Endógeno (que avança em relação à tradicional Teoria do Crescimento Econômico Exógeno) (1), onde o crescimento da produtividade sustentável resulta de externalidades contemporâneas ou intertemporais entre indivíduos que acumulam capital físico e humano, os modelos nesta nova teoria juntam a acumulação de capital físico e humano estudado pela escola neoclássica com o capital intelectual que é acumulado quando o progresso tecnológico é realizado. Ou seja, o avanço científico e tecnológico é internalizado nas decisões de investimento de indivíduos e empresas (daí o termo endógeno do crescimento).

Sendo assim, o mecanismo de avanço socioeconômico é percebido e obtido quando se agrega mais conhecimento (via Pesquisa & Desenvolvimento) à base da pirâmide à direita da Figura 2 à frente. E isto se manifesta através dos processos de seleção de informações que são relevantes à criação, entrega e captura de valor pelas empresas (camada de informação da pirâmide direita na Figura 2). Como estamos adentrando na Era da Inteligência Artificial, este processo de criação, entrega e captura de valor é confrontado com a maximização das funções utilidade dos consumidores e empresas a partir de processos humanos e não-humanos (algoritmos, assistentes e agentes inteligentes, robôs etc.), que são definidos nas camadas de dados e de discernimento da pirâmide direita da Figura 2, gerando externalidades que irão contribuir para mais conhecimento para a economia e a sociedade.

Em resumo, há muita coisa ainda a apontar nesta “visão informacionista” do avanço (ou progresso) socioeconômico (particularmente no que estamos denominando de “Finanças Digitais” — que pode ser considerado como a transformação digital do setor de Finanças da Economia) (2). Por ora, só procuramos mostrar, ao longo desta série de 06 (seis) newsletters (mesmo correndo o risco da simplificação), é que para entender este novo contexto de uma Economia e uma Sociedade Digitais, não podemos contar nem com o “liberalismo neoclássico econômico” nem com o “desenvolvimentismo econômico”, já que ambos pensamentos econômicos parecem estar deslocados do novo contexto aqui delineado!

(1) Cavalcanti, J. C. (2015). Effects of IT on Enterprise Architecture, Governance and Growth. IGI-Global, USA.

(2) Um capítulo importante nesta visão informacionista é o do papel do Estado neste novo contexto socioeconômico. Mas isto fica para uma outra oportunidade.

Figura 1 — Hierarquia Dados-Informação-Conhecimento-Sabedoria

Fonte: Tedeschi (2019), adapted from Ackoff, R. L. 1989. “From data to wisdom”. Journal of Applied Systems Analysis, 16, 3–9.

Figura 2 — Evolução histórica da Economia da Informação em contraste com a Hierarquia DIKW

Fonte: Autor

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